sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Salto de fé (Zero - nove barra dez)







 - Você parece triste - disse ela com ar sereno porém solene.
- Estou sempre triste - respondeu com o olhar vazio de quem traz o mundo nas costas e o coração na garganta. Nas mãos fiava um rosário das conchas de Dona Janaína. Trazia ao pescoço um colar de algas, umas mais finas, outras mais grossas. Todas mortas como ele só.


 Longe as gaivotas cavalgavam destrambelhadamente o rosa baço do céu. Feito  marinheiros bêbados, suingavam maneiras e aparvalhadas nos veios do vento. Sempre venta muito em Vitória nessa época do ano.


 Mirando as pedras do assoalho, resignado e por fim em paz estava o  velho palhaço. A barriga inchada e os pés muito largos afastados em "dez pras duas". Há tempos não sabia o que era fazer sorrir, mas dele achou graça  a Rainha das águas. Era no intervalo do buzinar incessante que vinha do carro parado alguns metros para lá que se dava a arrastada conversação:


 -Você costumava ser tão vibrante, tão mais votivo. O que passa, filho?
-São os dias, se ajuntando em meus bolsos como grãos secos da areia. Cada um é cada qual. Ainda assim parecem tão iguais... Só sei que se amontoam sem mais e me pesam, me pesam... 


 Trazia de fato um semblante esgotado. Nele, as linhas de expressão desenhavam histórias e mais histórias, arredias lembranças, quem sabe nem tão doces quanto agora rememorava. Ainda assim guardavam todas sua delícia e/ou revés, como não podia deixar de ser.


 Acima deles a ponte jazia na estagnada resiliência de sempre. Luzes pulsavam um ritmo monótono, entrecortado de estática e maresia - movimento cotidiano daqueles planaltos, a bem da verdade. Já quase ninguém repara tal espetáculo. Tomando Iemanjá pela mão, os olhos do moço brilham escuros e opacos enquanto lhe afaga a face a Deusa. 

 -Muito obrigado por tudo que me trouxeste. Por tudo que hoje me habita e por tudo que ora virá. Sou feliz por te encontrar. De fato, sou feliz porque você existe.
Tocada ante tanta entrega, tanta desídia, sua pele morena chega a arrepiar quando responde c'a voz embargada de orgulho e sal:

-Não por isso, meu Narciso. Não por isso. 



quarta-feira, 1 de outubro de 2014

Cada qual em sua mesa, em uma péssima escrita.



                                                   
                                                        "remova seu produto, por favor"
                                              

Essa história de sensível sentimental é conversa fiada, esbravejou Alcides.
Me conta uma história boa, esbravejou Arlindo.
Você tem história, esbravejou Abel.
Só sobre você, esbravejou Beatriz.
Não te dei mole, ressaltou Beatriz.
Abel coloca sua pança rígida para fora dos botões quase quebrados, diz pra escutar a melodia da paródia insana que está por trás das cortinas. Ele situa seus medos nos lugares certos. Abel carrega culpa, entre outras coisas, pela barriga, cerne da bagagem que carrega de bons e maus tempos. Abel está solto quando seus botões estão despregados, obrigar Abel a sentir completude seria impossível, não há congruência. São sensações divergentes, abarcadas em valas sem significância alguma pra ninguém. Abel se cala.
Ver o sol entrar ali me causa asco, quase soletra Beatriz.
Abel resmunga por dentro, inalterada face, assim como jogadores de poker. Não alcanço, não adianta, resmunga Abel.
A pessoa mais interessante do mundo se tornou meu próprio umbigo,

Todos da mesa disseram ao mesmo tempo.